quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O último pudim

Antes da morte, o prazer de um velho homem

Dizem que o que se leva dessa vida (além de algumas glórias de amor) é o prazer de um bom prato, uma talagada de pinga cheirosa, a peculiaridade de um vinho, os eflúvios de um mocotó. Ou seja, ainda que o sujeito tenha chegado ao termo da sua vida com uma herança moral recheada de grandes feitos, lutas e honrarias, ele há de se lembrar, no leito de morte, é daquela pata de siri com batida de jaboticaba em Itapoã, ou de uma lagosta suntuosa de 5 pounds em Boston. Os hedonistas vão além, enxergando no prazer o bem supremo; o objetivo mesmo, e a essência, da vida moral.

Tais reflexões me assaltaram dia desses, quando, sem qualquer explicação, veio-me à memória um almoço de verão em janeiro de 1996, no rodízio da Marius do Leme.

Naquela tarde avistei, numa mesa de fundo, o senador Nelson Carneiro, 86 anos, comendo um pudim de leite. Chamou-me atenção a calma e o vagar com que aquele velho homem, com tanta história, tantos feitos e tanto conhecimento (que emplacou o divórcio no código civil, enfrentando décadas de árdua oposição da Igreja e dos setores mais conservadores) saboreava aquele pedaço de doce. Cada colherada era cuidadosamente composta com uma quantidade não tão grande que desse logo cabo da porção, nem tão pequena que lhe tirasse o sabor. Curvado sobre o prato, Carneiro examinava o trajeto da colher com total prudência, concentrado no ato de degustar seu pudim com a noção absoluta da importância daquele rito, e evitando qualquer contato com os convivas ou com o ambiente que o circundava.

Fiquei ali contemplando, em alto grau de comoção, o senador traçar o seu pudim até que não restasse nem o caldo - ao qual ele deu fim com o mesmo carinho e na mesma cadência, num ponto equidistante entre o monástico e o orgiástico. Então, voltei ao meu churrasco devagarinho para, minutos depois, esquecido do fato, retomar meus modos animalescos de comer carne.

Semanas depois, vou apanhar o jornal na porta e, na primeira página, vejo a chamada para o obituário do senador Nelson Carneiro. A notícia, que normalmente me causaria um pesar moderado, encheu-me de espanto, e de uma estranheza parecida com a que se experimenta quando uma pessoa mais próxima vai embora e recordamos algum momento recente vivido com ela, ou uma situação em que a vimos gozar, derradeiramente, da plenitude da vida.

Pensar, por exemplo, que aquele pode ter sido o último pudim de Nelson Carneiro. O último pudim de um homem velho. Um dos últimos prazeres de um plácido senhor baiano, tribuno ora silencioso com sua colher, debruçado atenciosamente sobre aquele singelo preparado de leite, ovos e açúcar - tão singelo quanto suntuoso, nos matizes de seu paladar e de sua doçura.

Uma das últimas alegrias gustativas de um homem que morreria dali a dias, que sabia que ia morrer qualquer hora, mas não tão cedo, não tão antes de um próximo prazer cotidiano.

Ao mesmo tempo alegrou-me, como se fosse uma compensação “necessária” da vida, o fato de que o homem teve ainda essa oportunidade, de dedicar-se com tanta calma e de fruir sem impedimentos daquela sobremesa, sem que uma sombra (uma cirurgia iminente, por exemplo, ou um mal de diabetes) pairasse sobre ele; com a mesma liberdade e descompromisso de uma criança, embora com certa compostura de homem público.

Ver uma pessoa (ou mesmo um bicho) comer é sempre comovente, seja na realidade, seja na fantasia, seja numa descrição textual.

O forasteiro que encontra abrigo numa cabana onde lhe oferecem um prato de sopa, que ele devora com ansiedade e gosto, auxiliado por um naco de pão. O operário com sua marmita (já notaram como as marmitas são apetitosas?) é comovente. O gordo chupando um fio de macarrão. O magro avançando num hambúrguer.

O movimento da mandíbula de um homem ou de uma mulher que come, mesmo quando esteticamente canhestro, tem a sua beleza: expõe, de alguma maneira, sem máscaras fisionômicas, a nudez da alma, num dos poucos momentos em que o humano encena sua essência, por força da necessidade.

Um homem velho, quando come, é ainda mais enternecedor, pois, mesmo que tenha sido um cafajeste, a velhice como que o investe de um rigor, uma honradez, que podem fazer do carrasco (de fato) um santo (aparente). Mesmo quando lhe conhecemos a culpa, é capaz de cairmos na tentação da empatia se estiver imerso no ofício de lamber o beiço. Até o ruído de um cavalo arrancando e triturando um tufo de mato é capaz de comover e deixar o observador (em geral montado sobre o pobre) com olho grande.

Meu avô Salomão tinha uma versão de Chapeuzinho Vermelho. Contava ele que o caçador, para facilitar a tarefa de tirar vovó da pança, oferecia bolo e vinho ao lobo. Depois soube que, no original, o bolo e o vinho eram da menina para a avó, e que o lobo já dormia quando o caçador chegou para abafar.

Como seria bom e nobre se a cada dor, a cada luta, a cada morte, tivéssemos a sorte de merecer o gosto de um bolo, o conforto de um goró, o gozo de um último pudim.

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- Publicado no blog do Arnaldo Bloch na GloboOnline

- I bibida prus músicus!

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