sábado, 7 de fevereiro de 2009

Jorge "Jesus" (ou apenas... Jorge)

Parecia mendigo ou louco. Não era uma coisa nem outra.

Rua Eduardo Cotrim nos anos 50 (Bairro Lavapés) - Aqui viveu Jorge "Jesus"

Vou começar essa nova seção com um tipo bem conhecido dos resendenses não tão antigos, pois até há (relativamente) pouco tempo ele ainda estava entre nós. Eu, e muitas outras pessoas o chamávamos simplesmente de Jorge “Jesus”. Não diretamente a ele. Era um apelido meio secreto. Quando nos dirigíamos a ele dizíamos apenas... Jorge. Para os que não o conheceram, e como não tenho foto dele, vou tentar fazer uma breve descrição do tipo. Não era muito alto. Devia ter perto de 1,70m. Longos cabelos pretos cacheados, assim como sua nunca aparada barba. Ambos pareciam ensebados. Rosto branco, magro, macilento, os grandes olhos pretos tinham um brilho incomum, que lhe emprestavam um olhar rasputiniano. Boca bem torneada com dentes maltratados. Quase sempre sem camisa; cobria o forte tronco com um saco de estopa velho, que era recoberto por um pedaço de plástico transparente nos dias de chuva. As calças rotas e sujas amarradas na cintura com uma cordinha de sisal e com as pernas dobradas bem enroladinhas até perto do joelho, deixavam à mostra canelas brancas não muito finas, assim como polpudas batatas da perna. Pés grandes; andava invariavelmente descalço, o que lhe propiciava um solado natural grosso e aparentemente indestrutível. Não fumava, não bebia e nunca o vi de chapéu ou boné. Tinha a aparência de um legítimo mendigo. Ou louco. Mas não era nem uma coisa nem outra. Colocassem-lhe uma coroa de espinhos na cabeça e dessem-lhe uma cruz para levar às costas... Daí o apelido. Eu sempre me perguntava: ”Porque não o chamam para interpretar o Auto da Sexta-Feira Santa? Ficaria bem mais original que aquela imagem que crucificam em frente à Igreja”. De vez em quando passava pela gente resmungando alguma coisa ou mesmo falando com seus botões. Nunca vi ou soube que tivesse praticado qualquer maldade ou um ato tresloucado contra alguém. E nem rasgado dinheiro. Gostava de “matar” ou “internar” os moradores mais conhecidos do bairro. Pura brincadeira. De mau gosto, é certo, mas que rendia muito riso entre as “comadres e compadres”, geralmente suas vítimas preferidas. E a forma que ele usava para divulgar a “notícia” era infalível. Via o comércio que tinha mais gente e em voz alta falava ao comerciante, seu conhecido: “Ouvi dizer que o fulano morreu” ou “está internado muito mal na Santa Casa” e saía batido, sem dar maiores detalhes. A novidade se espalhava rapidinho e era um tal de uma comadre ou compadre bater na casa do “falecido” e ser recebido pelo próprio. Ou ir visitar o “internado” e descobrir que o mesmo estava gozando de plena saúde. E depois do susto, a farra no bairro era inevitável. Coisa de cidade pequena, pacata, gostosa de se viver. Coisa dos bons tempos... Quem de fora da cidade o visse, certamente se afastaria dele por causa dessa sua forma singular de se trajar. Além do aspecto de sujeira. Porém, não cheirava mal. Possuía umas casinhas no Lavapés, que alugava. Numa delas, morava nos fundos. Dizem que dormia em cima de uma goiabeira e quando chovia, usava uma lona plástica pra se cobrir. Não sei se é lenda essa parte da goiabeira. Homem de poucas palavras podia, no entanto ser visto sentado na praça da Matriz conversando com um seleto grupo de amigos. Todos bem vestidos. O assunto, quase sempre era política. E consta que sabia muito bem o que estava falando. Quando chegava alguém estranho ao grupo, ele ouvia um pouquinho da prosa do novato e se não gostasse, simplesmente saia. Ia embora sem nada falar. Apenas resmungava alguma coisa ininteligível. Provavelmente xingando o intrometido. Também era facilmente encontrado nas missas da Matriz. Ficava sempre em pé, nos fundos da igreja. Freqüentava com assiduidade os enterros. Às vezes carregava a coroa de flores. Sempre caladão. O detalhe mais interessante é que, apesar da aparência, era de inteira confiança. Os comerciantes do Lavapés que o conheciam bem, lhe confiavam o pagamento de contas, títulos, depósitos e recebimento de cheques, por isso era sempre visto também nas filas de banco. Alguns se assustavam com a presença de um “mendigo” no caixa pagando e recebendo. E os seguranças já o conheciam e não impediam sua entrada. Muito pelo contrário. Encontrei-o por diversas vezes no Itaú e Banco do Brasil. As pessoas (geralmente senhoras de idade, as famosas “comadres”) também lhe pediam para comprar coisas nos supermercados e lojas mais distantes. As mães se aproveitavam de sua aparência estranha, de “Bicho Papão” e quando queriam assustar os filhos pequenos, ameaçavam: “Se você não sossegar vou chamar o barbudo pra te pegar!!!” Coitado do Jorge. Tão pacífico e inofensivo, sendo usado pra corrigir criança mal educada. Realmente uma figura incomum, que fazia parte do folclore da cidade. Detestava a palavra banho. Dizem que o pessoal mais chegado a ele ali no Lavapés, às vezes cismava e o pegava a força para uma “aguada” no Paraíba, nos fundos da Escola da Da. Antonina. Aí sim, nessa hora ele deixava de ser “Jesus” e virava Besta, se tornava agressivo. Violento mesmo. Mas o pessoal, com jeitinho acabava dominando-o e, debaixo de gritos, palavrões, urros e gemidos, lhe davam uma boa esfrega no rio. No fundo, bem no fundo, acho que ele gostava, pois percebia que tinha muita gente que se importava com ele. E nesse dia, vestia uma camisa limpinha. O saco de estopa ficava esquecido, dependurado na goiabeira. Se foi como viveu. Sem deixar rastro. Apenas... Saudade. E fica a pergunta: Porque para nós ele não era visto como mendigo ou louco, mas lembrava a imagem do Menino Deus? Quase sempre, as aparências enganam... Acho que virou Jorge Jesus de vez.

Fernando Lemos – 19/01/2009

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- Esta crônica eu a trouxe do site Notícias de Resende, cujo capitão e criador é o meu amigo Fernando Lemos e está inserida na sua coluna Quem Lembra!?, onde deixei um comentário com os seguintes termos:

“Caro Fernando:

Você fez uma descrição perfeita do Jorge, que conheci desde 1948, quando meus pais se mudaram do Manejo para o Lavapés. Era uma figura realmente ímpar e, fato que você não citou na sua crônica, um detalhe que não chegou ao seu conhecimento, é que ele freqüentemente assistia a missa na Igreja Santa Cecília, aqui no Manejo, onde moro desde quando me casei, ou seja, desde 1971. Fiquei bastante triste quando soube que ele tinha partido, mas, seguramente, deve estar em algum lugar muito melhor do que este por onde ele passou.

Com a sua devida licença, vou copiar a sua crônica e repeti-la no meu blog Norrival, como uma derradeira homenagem que me é possível prestar-lhe.

Na sua fotografia, o casarão do primeiro plano, à direita, é, até hoje, dividido em duas residências. Minha família ocupava aquela com as duas primeiras janelas. Na outra, que continua até a esquina, com a porta e as três janelas, morava a família do Sr. Geraldo, fiscal da prefeitura, marido da Dona Arlete. A entrada para a nossa casa era feita pela lateral, onde se pode ver uma parte do portãozinho.)"
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- Brigado, Fernando!

- I bibida prus músicus!

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